post-image

Como decidir qual é a melhor estratégia para sair da quarentena?


Neste post discutiremos como escolher o melhor caminho a seguir para sair da quarentena. A decisão depende muito do peso que atribuiremos aos diferentes aspectos do isolamento social na sociedade no curto e no médio prazo: a salvação de vidas, a disponibilidade de leitos, a redução salarial e a saúde da economia em geral. Precisamos entender como esses aspectos se inter-relacionam e como impactam a nossa sociedade. Para isso criamos um app que consegue calcular a interação dos efeitos desses aspectos baseando-se no perfil demográfico da população brasileira de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD). Com esse app é possível simular o efeito das suposições do usuario a respeito do Coronavírus, e de diferentes cenários de flexibilização do isolamento social, na população brasileira.

Introdução

Depois dos reconhecidos efeitos desastrosos do Coronavírus (COVID-19) e a declaração da situação como pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS), foram adotadas medidas para conter a disseminação desse vírus pela grande maioria dos países. No geral, foram adotados três tipos de medidas: isolamento dos infectados e rastreaamento pessoas com as quais eles tiveram contato, restringimento a livre circulação entre países e/ou cidades e isolamento social.

Na maioria dos paises, a principal estratégia adotada tem sido alguma forma de isolamento social, porém existem variações entre elas. Quem é isolado de quem? Como? E por quanto tempo? De acordo com o Mnisterio da Saude (do Brasil), existem dois (principais) níveis de isolamento: Distanciamento Social Seletivo (DSS), conhecido como isolamento vertical, e Distanciamento Social Ampliado (DSA), o chamado isolamento horizontal. Há ainda um terceiro nível, chamado de bloqueio total, ou lockdown, na qual ninguém é permitido circular, a não ser para fornecer os serviços essenciais. É importante entender as diferenças entre elas, e por isso vou esclarecer melhor as duas abordagens discutidas no Brasil (usando esse site como referência):

  • Distanciamento Social Ampliado (DSA): Esta forma de isolamenteo social é bastante restritiva. Envolve o cancelamento de eventos e do trabalho presencial em escritórios, como também o estimulo ao teletrabalho, tudo a fim de evitar aglomerações de pessoas. Serviços essenciais são mantidos e atividades como sair para passear com o cachorro , andar de bicicleta e caminhar na rua não são proibidas, desde que seja mantido um distanciamento entre pessoas de pelo menos 2 metros. Contudo, autoridades locais poderiam exigir (implantar) outras restrições, que deveriam ser respeitadas.
  • Distanciamento Social Seletivo (DSS): O isolamento nessa abordagem é menos restritivo para a população em geral, desde que as pessoas estejam assintomáticas, porém pessoas que tenham mais que 60 anos ou condições crônicas de comorbidade (o grupo de maior risco) devem permanecer em seu domicilio. Embora essa abordagem seja uma medida menos danosa para as atividades econômicas e menos traumática para a população em geral, é preocupante sua aplicação sem as condições minimas de funcionamento do sistema de saúde (leitos, ventiladores mecânicos, EPI’s), pois seria difícil de controlar a transmissão do vírus e as pessoas do grupo de risco podem continuar tendo contato com pessoas infectadas.


No Brasil, as ações adotadas variam entre estados e cidades, porém no geral optou-se por algum tipo de isolamento horizontal1, ou DSA. Cogitou-se o isolamento vertical em alguns casos específicos, porém a maioria dos especialistas parece acreditar que o isolamento vertical não funcionaria, como apontado nessas entrevistas com especialistas e até com o novo ministro da saúde.

Mas algum dia vamos ter que sair do isolamento horizontal; algum dia vamos querer voltar a uma vida normal. Diferentes avaliações do cenário atual podem levar à adoção de estratégias distintas para afrouxar o nosso confinamento. A estratégia adotada precisaria levar em consideração dois aspectos fundamentais: salvar vidas no curto prazo, evitando que pessoas morram por causa do Coronavírus, e salvar vidas no médio prazo, evitando que pessoas morram por questões relacionadas a subnutrição e pobreza. Quanto mais tempo ficarmos em isolamento social horizontal, maior o impacto econômico, afetando empregos e também empresas. A melhor estratégia seria aquela que resultasse em menos mortes, considerando-se ambos o curto e o médio prazo.

Como existem preocupações relativamente antagônicas e opiniões muito polarizadas sobre a questão, vou tentar ser muito claro. Não devemos ter que escolher entre pessoas ou a economia. Muito pelo contrário, simplesmente estou dizendo que os dois aspectos são relevantes e que ambos devem e podem ser considerados. Não é possível escolher o melhor caminho a seguir sem considerar os dois lados e todos os aspectos da questão. Meu ponto é que mesmo se você, leitor, está convicto de que salvar vidas “hoje” é claramente mais importante do que os impactos que haverão nos empregos, nas empresas e na economia “amanhã”, não deve desconsiderar ou ignorar os argumentos do outro lado. Se a opção por vidas agora é claramente superior, ao debater os dois lados, a superioridade desse caminho deverá ficar ainda mais óbvia. Mas com uma vantagem: ao considerar os argumentos do outro lado, teria uma ideia melhor dos impactos economicos que ocorrerão no futuro, o que pelo menos nos permitiria tentar atenuá-los, ao invês de fingir que eles não existirão.

Por outro lado, você pode entender que mais mortes ocorrerão no médio prazo por causa dos efeitos desastrosos do Coronavírus na economia e que por isso é necessário sair o mais rápido possível do isolamento social. Nesse caso também você deve se preocupar com o outro lado do argumento: de que adianta sair rapidamente se a consequência dessa estratégia for perder todas as vidas que estávamos tentando salvar? Foi então tudo em vão? Os argumentos do outro lado são importantes para que você entenda com que rapidez pode ser feita a retomada da economia, pois implícito no racional de voltar o mais rápido possível está justamente a questão de qual deve ser essa velocidade.

Um dos argumentos mais fortes dos que se preocupam mais na salvação da vida a curto prazo é o “achatamento da curva,” um conceito que vem sendo discutido bastante na mídia como uma forma de não sobrecarregar o sistema de saúde. Esse argumento apoia a adoção do isolamento horizontal para desacelerar a disseminação do vírus, para que o número de casos se espalhe ao longo do tempo em vez de haver um pico muito elevado em um curto período de tempo; desse modo podemos evitar uma sobrecarga no sistema de saúde, e consequentemente salvar vidas. Esta estratégia se baseia numa suposição implícita muito forte: pressupõe-se que se houverem leitos hospitalares e respiradores suficientes para os infectados, não haverão vítimas fatais. Esta suposição não me parece representar a realidade. Acredito que muitas pessoas, principalmente idosos (e pessoas com comorbidades) morrerão ao contrairem a doença mesmo com todas as condições hospitalares adequadas. Ou seja, existe um subgrupo da população que não deveria ser exposto ao vírus.

Entretando, somente existem duas formas para evitar o contato desse grupo de risco ao vírus: ser imunizado por uma vacina (que ainda não existe) ou esperar sem exposição até que o vírus seja naturalmente eliminado (ou bastante reduzido) da população (o que poderia levar muitos meses até acontecer). Será que deveríamos esperar, todos enclausurados, em quarentena, até uma dessas situações se estabelecer para sair toda a população de uma vez? Parece mais sensato achar um caminho de migração gradativa do isolamento horizontal para alguma variação de isolamento vertical. Dessa forma imunizaríamos controladamente a população de baixo risco, acelerando o ciclo de vida do vírus, porém evitando a sobrecarga do sistema de saúde, e ao mesmo tempo também evitando a exposição da população de alto risco.

Para sair do isolamento horizontal e passar incrementalmente ao vertical, a acelaração ideal, ou ótima no sentido de salvar mais vidas no curto e no médio prazo, quase com certeza absoluta não será nem 0%, e nem 100%. Provavelmente também não será constante. Como não existem experimentos científicos realistas para avaliar as diferentes estratégias, não será possível ter certeza do caminho a seguir antes de começar a percorrê-lo, e muito menos adotar uma mesma medida para todo o país. Tudo indica que teremos que testar diferentes estratégias: se forem bem suscedidas, as mantemos, e se forem mal-sucedidas, as alteramos ou descartamos. Pisaremos no acelerador, e depois no freio, repetidas vezes. Quando você está dirigindo de noite, numa estrada desconhecida, sinuosa, você acelera a velocidade máxima, simplesmente torcendo para não ter uma curva fechada na sua frente? Ou mesmo que você tenha pressa, você controla sua velocidade à espera da próxima curva, acelerando um pouco mais quando vê uma reta, e reduzindo quando tem incerteza sobre o trajeto a frente?

A maioria dos relatórios preparados para auxiliar os governos a “guiarem” seus países nessa escuridão consideram alguma estratégia do tipo de tentativa e erro, como pode se visto nos relatórios da Universidade de Johns Hopkins, da revista Science e da FIESP. Porém não estamos falando aqui de testar cegamente uma estratégia e torcer para que ninguém morra. Muito pelo contrário. Estamos falando em tomar decisões pautadas em uma avaliação dos riscos potenciais das medidas de flexibilização do isolamento social, combinada com uma estimativa em tempo real da velocidade de disseminação do Coronavírus.

Essa velocidade de disseminação do vírus é usualmente avaliada usando a estatística do número efetivo de reprodução (\(R_t\)), que é a média do número de pessoas que foram infectadas por uma única pessoa infecciosa, no tempo \(t\). Se o \(R_t\) for maior que \(1\), quer dizer que o vírus está espalhando numa velocidade acelarada. Se for menor do que \(1\), quer dizer que sua velocidade de disseminação está desacelerando. Um problema com essa estatística é que pode levar semanas para que pessoas infectadas sejam contabilizadas. Entretando, alguns métodos já foram desenvolvidos para estimar o \(R_t\) em tempo real, apesar da demora na contabilização. Como exemplo, nesse site a medida é calculada diariamente para os estados do EUA. Para avaliar o risco pontencial da flexibilização das medidas de isolamento social no Brasil, e os seus impactos positivos e negativos na sociedade, é necessário fazer suposições, e imaginar cenários relevantes. Neste post, propomos um modelo simples para avaliar esses riscos, o qual será discutido em detalhes posteriormente.

A estratégia proposta então seria avaliar os riscos envolvidos com a flexibilização das medidas de isolamento. Se os riscos forem aceitáveis de acordo com a pessoa realizando a análise (o decisor), as alterações consideradas podem ser implementadas. Após isso, estima-se continuamente o \(R_t\), avaliando velocidade de disseminação da doença. Se o \(R_t\) não aumentar, a alteração pode ser vista como efetiva, pois reduz o nível de isolamento sem piorar a disseminação da doença. Se o \(R_t\) aumentar, então talvez a medida tenha que ser revista. Pode ser que apesar de o risco ter parecido aceitável, as alterações implementadas não foram adequadas ou não foram respeitadas pela população. Esse processo se repetiria continuamente, reduzindo gradativamente o isolamento até que grande parte da população tenha imunidade ao Coronavírus no Brasil, ou quem sabe até a completa eliminação do vírus.

Testes em massa na população também podem ser utilizados para ajudar a entender qual é o grau de imunidade da população, que é o critério de parada dessa estratégia. Além disso, esses testes ajudariam a obter uma estimativa mais precisa da real letalidade do Coronavírus, pois permitiriam avaliar a sub-notificação da doença, algo que por sua vez ajudaria a re-avaliar os riscos das medidas de flexibilização do isolamento. A ideia não é testar a maior quantidade possível de pessoas, mas sim de selecionar amostras da população, utilizando critérios estatísticos. Dessa forma, controlamos a precisão que é necessária para o processo decisório descrito acima, porém economizamos recursos importantes, os quais poderiam ser melhor utilizados, por exemplo, desenvolvendo testes laboratoriais mais precisos.

Para adotar esse tipo de estratégia precisaríamos então pensar cuidadosamente sobre como podemos manter os mais idosos e aqueles com comorbidades seguros, em isolamento, enquanto o resto da população voltar, incrementalmente, à vida normal. Dois aspectos que tiveram destaque no debate da flexibilização do isolatmento social são o retorno dos estudantes e da força de trabalho do país. Com relação à proteção daqueles com maior risco, duas opções também parecem mais relevantes: isolamento completo no domicilio de residência dessas pessoas, ou saida limitada do domicilio mas utilizando máscaras (e óculos de proteção).

Pensando nas diferentes possibilidades do isolamento vertical, e nos riscos associados com as diferentes opções de flexibilização do isolamento, desenvolvi um simulador baseado nos microdados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), realizada trimestralmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE). Essa pesquisa é utilizada pelo governo para mensurar diversos aspectos de emprego e salário no país. A importância de utilizar os resultados dessa pesquisa é que dessa forma limitamos as suposições que terão que ser feitas apenas a questões relativas ao Coronavírus e seu impacto na sociedade. Já temos um retrato confiável e detalhado do país no que tange à população brasileira, sem a necessidade de fazer ainda mais suposições. No restante deste post, discutirei as variáveis que são consideradas nas simulações, as possiblidades analíticas das informações disponíveis e também como utilizar o app que foi desenvolvido para que você, leitor, possa fazer a suas próprias suposições sobre a realidade que estamos vivendo e simular e compreender os possíveis impactos das diferentes medidas de isolamento social.

As informações consideradas pelo simulador

O simulador

O simulador apresentado aqui começou a ser desenvolvido como uma tentativa de responder a uma pergunta simples e direta: qual o percentual da força de trabalho do Brasil estaria “livre” para trabalhar se todos os trabalhadores que residem em domicílios onde nenhum morador tem mais de 50 anos pudessem trabalhar?

Meu objetivo com a pergunta era tentar entender a viabilidade de uma variação do isolamento vertical, onde apenas residentes de domicilios que não tivessem nenhuma pessoa do grupo de risco no que se refere à idade (acima de 50 anos) pudessem voltar a normalidade. Para responder a essa pergunta, utilizei os microdados da PNAD e contei quantos moradores pertencentes à força de trabalho residiam em domicilios onde a idade do morador mais idoso fosse menor do que 50 anos. Descobri que pouco mais de 52% da força de trabalho do Brasil estaria disponível para trabalhar nesse cenário. Ou seja, o Brasil poderia operar com 50% da sua capacidade. Me pareceu promissor. A próxima pergunta foi: nesse mesmo cenário, quantas internações e mortes ocorreriam? Fazendo algumas suposições sobre a letalidade do Coronavírus, obtive 1,1 milhões de internações e 1.800 mortos.

Nesse mesmo cenário, também me perguntei sobre redução salarial desses trabalhadores que não pudessem voltar ao trabalho. Quais suposições teria que fazer nesse caso? Consigo avaliar o impacto no salário do brasilero das medidas de assistência anunciadas pelo governo? E se um percentual da população exposta usasse mascaras e óculos, ou outra medida de proteção individual ainda mais efetiva, qual o impacto? De pergunta em pergunta, e cenário em cenário, percebi que haviam tantas possibilidades, e tantas suposições, que era melhor deixar cada um fazer a sua própria simulação. E mais que isso, essa era uma forma muito interessante de comparar sob as mesmas suposições o risco de medidas de isolamento diferentes, que de uma forma ou outra, estavam competindo entre si para serem implementadas.

Os dados sobre a população brasileira

A PNAD existe em várias versões, pois além dela ser publicada em períodos consolidados diferentes (mensalmente, trimestralmente e anualmente), ela inclui alguns módulos específicos que são aplicados apenas em um trimestre, ou apenas em um subgrupo dos domicílios, ou também apenas na primeira vez (visita) que um domicílio é incluído na pesquisa. O simulador é baseado nos microdados da PNAD Contínua de 2018, que considera apenas a primeira visita aos domicílios; optei por utilizar essa versão da PNAD um pouco mais antiga porque nela existem informações sobre a infra-estrutura do domicílio, as quais poderiam ser utilizadas para testar diferentes cenários de disseminação do vírus. Para atualizar os valores de rendimentos e salários para o valor real de março de 2020, considerei o fator de correção da inflação de 1,677, baseado na série histórica do IPCA do período de janeiro de 2019 a março de 2020.

Nesse recorte considerado da PNAD, existem informações sobre 452 mil pessoas, as quais residem em 152 mil domicílios. Além disso, existem diversas informações sobre a composição familiar, infra-estrutura do domicílio, e auxílio recebido do governo, além de informações dos indivíduos como sexo, idade, escolaridade, trabalho e rendimento, posse de carteira assinada, ocupação, setor de atividade da empresa onde a pessoa trabalha, e muito mais. No dicionário de dados dessa pesquisa são listadas mais de 280 variáveis.

Os dados da PNAD mostram com muito detalhe diversos aspectos relevantes da nossa sociedade, os quais permitem avaliar muitos dos riscos da redução das medidas de isolamento do Coronavírus. Entretanto, a pesquisa não contém informações relacionadas à saúde e a comorbidades, as quais seriam claramente importantes para se fazer uma avaliação mais completa do cenário atual. Apesar dessa enorme ressalva, optei por essa forma de avaliar os riscos discutidos neste post porque posso utilizar apenas dados públicos.

Também considerei outra fonte de dados para enriquecer a análise: o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), de onde obtive o número de óbitos em 2018 e o número de leitos de UTI, públicos e particulares, disponíveis no país em março de 2020. Ambas essas informações foram obtidas no nível de município, o que me permitiu incorporar esses dados aos da PNAD no seu nível geográfico mais refinado: Capital, Região Metropolitana (RM), Região Integrada de Desenvolvimento (RIDE) e área restante, dentro de cada estado.

O simulador depende de parâmetros relevantes e estabelece valores iniciais (default) baseados nas informações disponíveis em vários sites, mas esses valores podem ser alterados pelo usuário. Os parâmetros utilizados incluem medidas relacionadas à disseminação e desenvolvimento da doença, aos efeitos na renda do trabalhador e aos grupos potencialmente confinados (ou liberados) pelo isolamento social (setor de atividade econômica, idade do morador mais velho e frequência à escola).

Parâmetros e suposições relacionados ao Coronavírus

Os parametros relacionados ao Coronavirus controláveis no simulador incluem à virulência e letalidade do vírus e o uso de equipamentos de proteção individual (EPI) , como também dados sobre acesso a condições de infra-estrutura dos domicilios e de densidade populacional. Os parâmeteros principais podem ser estabelecidos para cada grupo de idade destacado na tabela 1 abaixo e refletem suposições sobre a taxa de internação, a taxa de morte dos que foram internados e a efetividade de EPI.

A lógica do simulador supõe que apenas pessoas que não estejam confinadas no seu domicílio serão expostas ao vírus. Além disso, supõe que daqueles que não estão confinados no domicílio, apenas os que não utilizam EPI’s (máscaras e óculos) são de fato expostos. Claramente esta é uma simplificação da realidade, mas a ideia do parâmetro é permitir algum controle sobre a efetividade das medidas de isolamento social e proteção individual, mesmo para as pessoas que não estão confinadas no seu domicílio. Por exemplo, uma pessoa que utiliza máscara e óculos de proteção e evita aglomerações e contatos com outras pessoas está bastante protegida. Essa pessoa se expõem minimamente ao Coronavírus mesmo fora do seu domicílio. O fator de redução de efetividade do uso de EPI’s controla então o percentual de pessoas que não serão expostas ao contágio do vírus ao sairem do seu domicílio.

Para as pessoas que podem sair dos seus domicilios e que estão por consequência expostas, a taxa de internação controla o percental dessas pessoas que precisarão de internação. E finalmente, das pessoas internadas, a taxa de morte controla quantas de fato morrerão. As taxas iniciais (default) de internação e de morte utilizadas no simulador, apresentadas na tabela 1, foram obtidas desse estudo do Imperial College, e são aquelas observadas na Italia no auge da disseminação do Coronavírus no país. Claramente outras possiblidades poderiam ser consideradas, como aponta esse artigo sobre a distribuição etária das pessoas infectadas em São Paulo, que indica uma taxa de internação alta para a população de até 40 anos, embora a letalidade continue sendo mais alta ainda entre os mais idosos. A diferente relatada pode ocorrer por vários motivos, seja porque os mais jovens em São Paulo se expõem mais, ou porque os profissionais da saúde cuidando dos infectados têm essa faixa etária. De qualquer forma, os parâmetros discutidos aqui podem ser alterados para representar a realidade mais específica. Uma vez que você, usuário, controla o valor dessas suposições, pode considerar outras opções na simulação,

A fator referente ao uso EPI’s é baseada nesse índice de isolamento social, que mostra o percentual da população que está efetivamente respeitando a recomendação de isolamento, atualmente em torno de 50%. Ajustei o valor default para esse parâmetro segundo a faixa etária, pois considerei que em idosos o uso de EPI’s seria maior, e menor entre os mais jovens, mas os valores podem ser controlados usuário.

Table 1: Suposições sobre a gravidade e letalidade do Coronavírus (percentual)
Idade da
pessoa
Taxa de
internação
Taxa de
morte
Taxa de uso
de EPI’s
0-9 0.001 0.000 0.25
10-19 0.003 0.000 0.25
20-29 0.012 0.000 0.25
30-39 0.032 0.002 0.50
40-49 0.049 0.002 0.50
50-59 0.102 0.008 0.50
60-69 0.166 0.027 0.75
70-79 0.243 0.108 0.75
80+ 0.273 0.193 0.75

As informações sobre a qualidade da infra-estrutura e do local do domicílio também podem influenciar a disseminação da doença. Esses parâmetros indicam o quanto os riscos de exposição ao vírus aumentam em função da localização e tipo de domicílio. Pressupõem como valor default que morar em apartamento em áreas urbanas carrega 10% mais risco de exposição do que morar em outros locais.

Com relação à qualidade da infra-estrutura consideramos quatro características relevantes: coleta de lixo, origem da água, ligação de eletricidade e destino do esgoto. Um domicílio é classificado como tendo boa infra-estrutura se o lixo é coletado por algum tipo de serviço de limpeza, se tem acesso a rede geral de distribuição de água ou algum poço artesiano, se têm energia elétrica em pelo menos um cômodo e se o destino do esgoto é a rede geral ou uma fossa. Contamos quantas dessas características faltam num domicílio para chegar a uma classificado em cinco níveis de qualidade da infra-estrutura domiciliar, como mostrado na tabela 2. Os valores default consideram que domicílios com uma única deficiência terão sua taxa de exposição aumentada em 10% e aqueles com duas ou mais deficiências, em 20%.

Table 2: Ajuste de exposição dependendo da infra-estrutura do domicílio
Infra-estrutura do
Domicílio
Ajuste de
infra-estrutura
Infra Boa 1.0
1 deficiência 1.1
2 deficiências 1.2
3 deficiências 1.2
4 deficiências 1.2

Parâmetros e suposições relacionados ao salário

Esse conjunto de suposições do simulador diz respeito ao impacto do Coronavírus na renda domiciliar mensal per capita das pessoas. Essa medida de rendimento foi escolhida por levar em conta, ao mesmo tempo, a renda total do domicílio e o número de moradores. Utilizando essa medida, posso também considerar como são impactadas pelo vírus não somente pessoas que recebem um salário, como também as pessoas que não têm rendimento e dependem de suas famílias para sobreviver.

Dois subconjuntos de parâmetros podem ser alterados pelo usuário no simulador: um fator de redução do salário do trabalhador, dependendo do tipo de ocupação, e também uma adição pontual na renda mensal das pessoas, contempladas pela adoção de algumas medidas propostas pelo governo, com o objetivo de trazer alívio financeiro às pessoas de baixa renda durante o isolamento social.

Para a redução do salário do trabalhador, considerei que pessoas que não puderem trabalhar por causa do isolamento social terão uma redução salarial, como pode ser visto nesta notícia. Também considerei que não haverá redução de nenhum tipo de auxílio recebido do Governo (as reduções não se aplicam nesses casos). Criei os grupos de ocupação listados na tabela 3, permitindo que o fator de redução aplicado àquela ocupação seja alterado. Também permito que fatores diferentes sejam usados dependendo do local de residência: Capital/Região Metropolitana e Outros lugares. Os agrupamentos de atividade procuram separar tipos de ocupações que podem ter problemas especifícos de geração de renda durante a quarentena. Especificamente, identifiquei os trabalhadores sem carteira assinada, os que trabalham por conta-própria, e aqueles com trabalhos que dificilmente seriam executados de casa e para os quais o Home office não seria uma opção. A inviabilidade do Home office levou em conta o local do trabalho principal da pessoa: se for “Em domicílio de empregador, patrão, sócio ou freguês,” “Em veículo automotor (táxi, ônibus, caminhão, automóvel, embarcação, etc.)” ou “Em via ou área pública (rua, rio, manguezal, mata pública, praça, praia etc.)” considerei que seria difícil trabalhar de sua própria residência.

É importante ressaltar que o critério de definição da viabilidade do Home office adotado aqui é extremamente superficial. Poderia ser feito de forma muito mais realista se considerasse simultâneamente a ocupação do trabalhador e o setor econômico da empresa onde ele trabalha. Entretanto, por simplicidade, mantive o critério adotado aqui.

Os fatores de redução default dos parâmetros incluídos no simulador estão descritos na tabela 3. Destaquei em vermelho os grupos de trabalhadores que consideram seriam mais expostos. Por exemplo, estou supondo que o trabalhador sem carteira assinada pode perder até 50% do seu salário, e aquele que trabalha com serviços domésticos até 60%. Esses fatores de redução salarial não levam em conta uma perda eventual de emprego. Devem ser então utilizados pensando no impacto desses dois aspectos.

Table 3: Ajuste de exposição dependendo da infra-estrutura do domicílio
Local do
Município
de residência
Tipo de
trabalho
do morador
Fator de
redução
do salário
Cap/RM Empregador 0.8
Cap/RM Serviços Domésticos 0.6
Cap/RM Sem Carteira 0.5
Cap/RM Conta-própria 0.8
Cap/RM Outros-HomeOffice possivel 0.9
Cap/RM Outros-HomeOffice impossivel 0.7
Outros Empregador 0.8
Outros Serviços Domésticos 0.6
Outros Sem Carteira 0.5
Outros Conta-própria 0.8
Outros Outros-HomeOffice possivel 0.9
Outros Outros-HomeOffice impossivel 0.7

Com relação às medidas propostas pelo Governo para o alívio dos trabalhadores de baixa renda, considerei as medidas descritas nessa notícia:

  • Auxílio mensal de R$600 para trabalhadores informais (por três meses).
  • Auxílio à mulher que for mãe e chefe de família de R$ 1,2 mil por mês (por três meses).
  • Antecipação das duas parcelas do 13º salário de aposentados e pensionistas do INSS para abril e maio (por dois meses).
  • Antecipação do pagamento do abono salarial para junho (por um mês).
  • Reforço ao programa Bolsa Família de R$ 3,1 bilhões (por três mês).


Quando os valores desses auxílios são referentes ao valor do salário do trabalhador, considerei apenas o trabalho principal. Na questão do Bolsa Família, aumentei o valor recebido em 241%, que é aproxidamente o tamanho relativo do reforço dado pelo governo ao programa distribuído por um período 3 meses. Outra simplificação foi classificar como trabalhador informal todos os trabalhadores sem carteira de trabalho assinada. Ao utilizar essas opções de alívio financeiro às famílias, o usuário deve lembrar que os recursos são limitados a alguns poucos meses; então se a simulação for feita considerando mais meses de isolamento social, esse recursos, na realidade, não existirão. Esse controle deve ser feito pelo usuário. Além disso, lembre-se de que alguns desses auxílios são apenas antecipações salariais. Ao iniciar o simulador, todas as medidas de alívio financeiro estão desabilitadas.

Opções de flexibilização do isolamento social

Apenas três dimensões de isolamento social foram consideradas no simulador: o setor de atividade da empresa onde a pessoa trabalha, a idade máxima de um morador do domicílio e, para aqueles que estudam, a série escolar frequentada pelos moradores. A forma como o isolamento social é simulado é simples. Com relação à exposição ao Coronavírus, se qualquer pessoa de um domicílio for retirada do isolamento social, então todas as pessoas que residem no domicílio se tornam automaticamente expostas ao vírus.

Porém para aplicar as reduções salariais e calcular a força de trabalho ativa no país, consideramos apenas aqueles domicílios liberados tanto por faixa etária do residente mais velho quanto por tipo de atividade. Isso que dizer que mesmo que os estudantes voltem a estudar, os moradores daquele domicílio não voltarão a trabalhar normalmente.

Na tabela 4 listo todos os setores de atividade econômica considerados na simulação. Em laranja destaco os setores considerados essenciais para a economia, os quais estão ao iniciar o simulador, por default, liberados do isolamento social . As pessoas que trabalhando nesses setores podem trabalhar normalmente. A razão para destacar alguns setores, como por exemplo restaurantes e bares, é para poder analisar o risco que corremos ao retirar trabalhadores desses setores do isolamento social. Vale enfatizar aqui que o impacto considerado na simulação está relacionado apenas às pessoas que trabalham nesses setores e seus domicílios; não contempla frequentadores e as possíveis aglomerações que ocorreriam quando clientes voltassem a frequentar esses lugares. Nem leva em conta que tais clientes que vão beber ou comer não podem aproveitar a proteção dos EPI’s. A simulação serve principalmente para avaliar quantas pessoas (e domicílios) seriam impactadas negativamente, sendo infectadas e mortas, versus o impacto positivo da manutenção dos empregos e do salário integral dos trabalhadores.

Table 4: Setores de atividade considerados na simulação
Setor de atividade
da empresa onde
o morador trabalha
Domicílio
fora do
isolamento
Saúde 1
Supermercado e Hipermercado 1
Transporte (cargas/correio) 1
Segurança/Limpeza - Pública e Prédios 1
Prod. e Dist. de eletricidade, gás e água 1
Tratamento água,esgoto e lixo 1
Construção 1
Adm. Pública 0
Postos de Gasolina e reparação de veículos 0
Rádio, TV e notícias 0
Indústrias Extrativas e de Transformação 0
Agricultura, Pecuária, Pesca, etc 0
Educação 0
Esporte 0
Serviços Domésticos 0
Restaurantes e Bares 0
Comércio Ambulante e Feiras 0
Turismo e Hospedagem 0
Outros Comércios 0
Outras Atividades 0
Sem Atividade 0

Também é importante considerar que alguns setores de atividade não conseguirão funcionar à plena capacidade, mesmo sendo liberados do isolamento, pois alguns dos clientes não poderiam usufruir do serviço. Um exemplo óbvio é o setor de Turismo, pois talvez leve algum tempo para que os clientes em potencial voltem a viajar, como também depende muito de como e quando os outros países sairão da isolamento social. Outro exemplo seriam os professores. Não adianta liberar os professores sem liberar os alunos também. Casos como esses claramente não são considerados corretamente pelo simulador.

Na tabela 5 listamos as faixas de idade máxima de moradores de domicílios consideradas no simulador, embora o default seja que todos os domicílios estejam liberados. Isso implica que, inicialmente, apenas o setor de atividade define o isolamento do domicílio, mas o usuário pode facilmente alterar essa suposição.

Table 5: Idade máxima do morador do domicílio liberado do isolamento social
Idade máxima
dos moradores
do domicílio
Domicílio
fora do
isolamento
0-9 1
10-19 1
20-29 1
30-39 1
40-49 1
50-59 1
60-69 1
70-79 1
80+ 1

Na tabela 6 listamos as séries escolares que podem ser consideradas na simulação. A sigla EJA significa Educação de jovens e adultos. Ao iniciar o simulador, alunos de todas as séries estão impedidos de terem aulas presencialmente. É importante lembrar que, mesmo que um domicílio não esteja liberado do isolamento social (por causa da idade dos moradores ou por causa do setor de atividade dos trabalhadores), se os alunos forem liberados, todos os moradores que residem no mesmo domicílio também serão expostos ao vírus. A motivação de configurar o simulador dessa forma é apenas para simplificar a análise, embora situações mais realistas ou específicas podem ser simuladas.

Table 6: Séries escolares liberadas do isolamento social.
Série sendo
cursada
pelo morador
Domicílio
fora do
isolamento
Pré-escola 0
Fundamental Regular 0
Fundamental EJA 0
Médio Regular 0
Médio EJA 0
Superior ou mais 0

Os resultados do simulador

Os resultados do simulador são apresentados em quatro tabelas distintas. Na primeira, comparamos a distribuição populacional por faixas de renda domiciliar per capita original da PNAD (de 2018 ajustada pela inflação), com a distribuição levando em conta o impacto do isolamento social e das medidas de auxílio do Governo, de acordo com os parâmetros definidos na simulação.

Na segunda tabela, mostramos um retrato da população por faixa etária. Nesse retrato, mostra-se a população brasileira por faixa etária, bem como a força de trabalho e o número de estudantes liberados do isolamento social. Também mostramos o número de pessoas expostas (possivelmente infectadas), e o número de internações e mortes causadas pelo Coronavírus. Todas as quantidades são calculadas levando em consideração os parâmetros do simulador que controlam o isolamento social e o impacto do Coronavírus na sociedade.

Nas outras duas tabelas, os resultados apresentados são similares ao retrato por faixa etária, porém mostram a situação em diferentes regiões geográficas do Brasil: a primeira mostra o retrato por Região e a outra o retrato por Estado. Em ambas essas tabelas, também incluímos o total de leitos de UTI do país, e o número de mortes registradas em 2018, para serem usados como referência.

Alguns exemplos de uso do simulador para flexibilizar o isolamento social

Nesta seção do post vamos analisar, rapidamente, os resultados de três cenários de flexibilização do isolamento social. Vamos investigar o impacto do isolamento de somente domicílios com pessoas de 50 anos ou mais, o impacto da liberaração de todos os alunos, e finalmente, o impacto da liberaração do setor econômico de bares e restaurantes. Em todos esses cenários utilizaremos os valores default dos parâmetros descritos na seção anterior, de forma que iremos apenas alterar os parâmetros referentes à flexibilização do isolamento social.

Isolamento somente de domicílios com residentes de 50 anos ou mais

A simulação desse cenário visa avaliar o impacto de um tipo de isolamento vertical: o isolamento de moradores de domicílios com pelo menos um morador de 50 anos ou mais. Tem a vantagem de liberar do isolamento os trabalhadores de todos os setores de atividade econômica. Como benchmark, usaremos o cenário atual, onde não há restrição especial de domicílios com pessoas idosas, mas apenas as atividade econômicas destacadas na tabela 4 são permitidas.

Na tabela 7 mostramos uma breve comparação no nível nacional, dos resultados da simulação. Apesar de haverem bem mais pessoas expostas e 150 mil internações a mais, com esse isolamento vertical o número de mortes é 10 vezes menor. De positivo também é o fato de que 52% da força de trabalho do país seria liberada, bem mais que os 29% atuais, e de que o percentual da população com uma renda domiciliar mensal per capita de menos de R$300 diminuíria em 1.5%.

Table 7: Tabela comparativa dos cenários.
Estatísticas consideradas Cenário
Restrição de
Setores Econômicos
Cenário
Restrição Etária
50 anos ou mais
Pessoas Expostas ao vírus 30.578.772 67.212.494
Número de Internações 965.304 1.114.460
Número de Mortes 19.124 1.779
% da força de trabalho ativa 29% 52%
Renda domiciliar per capita - Até R$ 300 8,8 7,3

Analisando o resumo dessas estatísticas, percebemos que o isolamento vertical é melhor do que o cenário atual em quase todos os aspectos considerados, embora algumas ressalvas devam ser feitas. Como o número de pessoas expostas é muito maior, provavelmente haverão muito mais pessoas infectadas com o Coronavírus, mesmo que não sejam casos graves necessitando de internação. Para avaliar o efeito desse cenário de isolamento, seria preciso acompanhar a estatística \(R_t\), para determinar se o número médio de infectados gerados por uma única pessoa infectada está aumentando. Se estiver, teríamos que pisar no freio, talvez voltando a isolar trabalhadores de alguns setores econômicos. Vale a pena enfatizar que apesar desse possível aumento do \(R_t\), as internações e mortes continuam controladas nesse cenário, então se indicadores atualizados desses aspectos também estiverem sendo avaliados, a decisão poderia ser de não alterar a flexibilização, pois um aumento na velocidade de disseminação do vírus que não seja acompanhada de mais internações e mortes não é problemática.

Por outro lado, ao invês de liberar todos os setores econômicos simultaneamente, poderíamos liberar os distintos setores aos poucos, estabelecendo regras claras para esses funcionários, específicas para cada setor, tentando minimizar a infecção de muitas pessoas novas. Esses cenários intermediários também poderiam ser simulados alterando o valor do parâmetro de uso efetivo de EPI`s.

Nesses dois cenários (e em todos a serem avaliados), é importante acompanhar o desenvolvimento da estatística \(R_t\). Apesar do objetivo sempre ser mantê-la abaixo de um, dependendo da fase do ciclo de vida do vírus, o nosso comportamento deve ser diferente se quisermos acelerar o ciclo de vida dele. No início da disseminação, onde o vírus se espalha muito rapidamente, para manter o \(R_t\) em níveis aceitáveis, é importante evitar que novas pessoas sejam expostas. Entretanto, conforme o passar do tempo, quando milhões de pessoas já tiverem se tornado imunes ao Coronavírus por já terem sido infectadadas, podemos expor mais pessoas e mais rapidamente e mesmo assim manter a estatistica \(R_t\) sob controle. Isso ocorre por causa da chamada imunidade de rebanho: o vírus terá mais dificuldade de encontrar novas pessoas para infectar, porque as pessoas imunes funcionam como uma barreira que dificultam o acesso do vírus a pessoas sem imunidade.

As análises feita aqui foram bem simplistas e frias, pois não levaram em conta o fardo muito maior que terá que ser colocado sobre os mais idosos e aqueles que residem com eles. Porém, se os moradores desses domicílios isolados forem ensinados a usar corretamente os equipamentos de proteção individual (especialmente colocar e retirar adequadamente), e respeitarem tais instruções, reduziriam bastante a sua exposição ao sair do domicílio. Assim, provavelmente poderiam sair de maneira limitada, reduzindo significativamente o stress da vida em confinamento. Se, além disso, os idosos que moram sozinhos ou que precisam de auxílio receberem a assistência necessária para realizarem suas atividades diárias, e se esses domicílios isolados também receberem apoio financeiro, a situação melhoraria, e muito, a eficiência do isolamento social que estamos vivendo hoje. Também aceleraria o ciclo de vida do vírus, reduzindo significativamente o tempo de quarentena médio de toda a população brasileira, inclusive daqueles ainda em isolamento. Com esse isolamento vertical, ganharíamos tempo para entender melhor a virulência, o tratamento e a letalidade do Coronavírus, além de reduzir a chance de mortes no curto e no médio prazo.

É importante ressaltar, novamente, que todos esses resultados são condicionados a todas as suposições feitas nessa simulação. E além disso, se a população não respeitar as regras do isolamento vertical implantado, as suposições podem deixar de ser válidas. Por isso, juntamente com a flexibilização do isolamento social, será necessário o acompanhamento cuidadoso da estatística \(R_t\), como também a taxa atual de mortes causadas pelo Coronavírus. Em última instância, o Governo também poderia (e talvez devesse) fiscalizar (e auxiliar) a adoção das regras estabelecidas, tanto com relação ao local de trabalho, quanto com relação aos domicílios em isolamento social.

Liberar o retorno dos alunos as escolas

Nessa simulação será avaliado o impacto de flexibilizar o isolamento social, e permitir que os alunos voltem estudar nas escolas. Vamos considerar o cenário de isolamento vertical da análise anterior, onde apenas domicílios onde o morador mais velho tenha menos de 50 anos estão liberados do isolamento social e os trabalhadores de todas as atividade econômicas podem trabalhar. A ideia aqui é liberar progressivamente os alunos dos diferentes níveis educacionais, e avaliar qual é o impacto na sociedade. Na tabela 8 mostramos os resultados dos 5 cenários considerados. É importante mencionar que tem um aspecto dessa simulação que não faz muito sentido: ao re-abrir as escolas de todos os níveis, os adultos com 50 anos ou mais que estão em isolamento são liberados para estudar. Em algum sentido, se esse morador mais velho vai ser exposto de qualquer forma, porque não liberá-lo para trabalhar também? Como o foco da análise dessa seção são apenas os estudantes, e não a força de trabalho, vou ignorar esse aspecto “paradoxal” da simulação.

Table 8: Tabela comparativa dos cenários.
Série liberada
(acumulada)
Alunos
estudando
Percentual do
total de alunos
estudando
Pessoas
expostas
Número de
internações
Número de
mortes
Sem escola 0 0% 67.212.494 1.114.460 1.779
Pré-escola 5.193.488 10% 69.111.996 1.172.537 3.413
Até fundamental 37.810.850 75% 85.403.179 1.767.260 20.757
Até médio 43.619.213 87% 90.390.490 1.985.060 27.357
Até pós-graduação 50.217.661 100% 96.262.498 2.301.463 35.837

Nessa seção analisei apenas o número de mortes. Fica evidente que o número de mortes causadas pelo vírus está bastante relacionada ao nível escolar sendo liberado. Se apenas os alunos da pré-escola voltarem a estudar, o número de mortes comparando ao benchmark, onde nenhum aluno está estudando, quase dobra. Porém se o ensino fundamental também for liberado, aumentamos as mortes em mais de 11 vezes. Se liberarmos também o ensino médio, as mortes aumentam em 15 vezes. E finalmente, se liberarmos todos os níveis educacionais, o número de mortes aumentaria mais de 20 vezes.

O riscos associados com a liberação dos diferentes níveis educacionais me parecem muito altos, mesmo no caso do ensino pré-escolar. Medidas de prevenção muito fortes teriam que ser tomadas, e visto que estamos considerando muitas crianças, elas provavelmente seriam pouco efetivas. A alternativa de apenas liberar alunos que não residem em domicílios com pessoas de 50 anos ou mais provavelmente ajudaria muito na redução do risco, porém, por outro lado, parece injusto com as crianças que estariam em isolamento, pois além de terem sua liberdade reduzida, elas também estariam sendo prejudicadas no aspecto educacional se comparadas as outras crianças que retornariam normalmente a escola.

Liberar o setor econômico de bares e restaurantes

Talvez um dos setores econômicos onde haja a maior pressão popular para que seja reaberto seja o de “bares e restaurantes”, principalmente por serem locais onde muitos brasileiros convivem socialmente. Justamente por isso, a liberação desse setor é mais complicada, pois não faz muito sentido reabrir esses estabelecimentos sem deixar que os clientes interajam socialmente uns com os outros. Adiciona-se a isso o fato de que as atividades realizadas dentro desses locais, como beber e comer, dificultam demais a utilização de forma segura de EPI’s.

Para avaliar os riscos de liberar esse setor econômico, usaremos o cenário atual como benchmark, onde não há restrição de domicílios com pessoas idosas, mas que apenas as atividade econômicas destacadas na tabela 4 são permitidas. Novamente, é importante enfatizar que nessa simulação apenas levamos em consideração os trabalhadores desse setor econômico. Não é possível simular qual será o impacto dos clientes frequentarem esses locais e por isso seria importante regulamentar detalhadamente as regras de distanciamento social que deveriam ser consideradas pelos frequentadores. Outra questão relevante é que não fizemos distinção entre restaurantes que fazem delivery ou não, assim estamos considerando retirar ou não todos os restaurantes de uma vez, algo que não retrata corretamente a situação atual.

Na tabela 9 mostro um resumo dos dois cenários. Em todas as estatísticas analisadas, o impacto é similar: aumento de 20%, tanto nas que medem impactos positivos de aumento da força de trabalho ativa quanto nas que medem impactos negativos, como exposição de pessoas, número de internações e número de mortes.

Table 9: Tabela comparativa dos cenários.
Cenário Força de
trabalho ativa
Pessoas
expostas
Número de
internações
Número de
mortes
Sem Bares e Restaurantes 30,292,569 30,578,772 965,304 19,124
Com Bares e Restaurantes 36,499,121 36,627,041 1,152,283 22,908
Diferença (N) 6,206,552 6,048,269 186,979 3,784
Diferença (%) 20% 20% 19% 20%

Os impactos negativos mostrados nessa simulação (de exposições, internações e mortes), poderiam claramente ser reduzidos ao se tornar obrigatório o uso de EPI’s pelos funcionários, talvez exigindo o uso constante de luvas e óculos. Também ajudaria estabelecer normas sobre entrada e saida do domicílio e do estabelecimento comercial. Porém, isso ignora o impacto que será causado pelos clientes, que, além de ser difícil de ser mensurado, seria de difícil mitigação, pois as normas provavelmente impediriam o convívio social entre os clientes. Soluções criativas para a abertura dos estabelecimentos sem permitir a convivência social já existem, e por enquanto talvez sejam, de fato, a única opção viável. Me parece que a re-abertura total desse setor estará mais atrelada a questão da imunidade de rebanho do que a políticas de flexibilização do isolamento social, salvo alguma solução criativa que permita a convivência social entre os clientes.

O app do simulador

O app online com o simulador discutido e utilizado aqui está acessível nesse link e também nessa seção do post. Se você, leitor, tiver dificuldade de visualizar o app, recomendo utilizar o link e abrir o app em uma nova aba. Se ainda assim as dificuldades de visualização persistirem, uma opção sempre útil é apertar os botões CTRL e - do teclado ao mesmo tempo.

O uso do app é simples; basta escolher as opções específicas de flexibilização do isolamento social e clicar no botão Simular. Se você quiser alterar alguns dos parâmetros relativos aos salários ou ao impacto do Coronavírus, também basta clicar na aba desejada, e editar os parâmetros apresentados nas tabelas (clicando duas vezes no número e depois apertando ENTER).

Conclusão

Tenho pensando bastante sobre como devemos sair da quarentena. Confesso que tudo que escrevi neste post, fiz com um objetivo bem claro: quero sair da quarentena. Minha motivação foi totalmente egoísta. Quero voltar a praticar esportes coletivos, quero viajar com as minhas filhas, quero que minhas filhas voltem pra escola, quero voltar a frequentar bares e restaurantes, quero ir num show de rock, quero fazer um churrasco onde posso convidar todos os meus amigos, entre outras coisas banais que parecem ganhar mais importância a cada novo dia passado em isolamento social.

Porém, ao escrever o post, comecei a me preocupar também com as outras pessoas. Não só com meus familiares e amigos, porém com todos aqueles que estão tendo sua liberdade cerceada. A liberdade é, sem sombra de dúvida, uma das maiores conquistas da humanidade. E se tem alguma coisa que esse vírus tirou além da vida de milhares de vítimas, foi a liberdade de bilhões de pessoas.

Eu quero a nossa liberdade de volta. Porém também não quero que mais pessoas morram por isso. A estratégia de saída da quarentena que eu discuti aqui permite que ambos esses objetivos sejam contemplados. Se a estratégia for bem executada, se os riscos das medidas implantadas forem bem avaliados, e os impactos resultantes na sociedade acompanhados de perto, perderemos nossa liberdade por menos tempo, perderemos menos vidas no curto prazo e perderemos menos vidas no médio prazo. Ficarmos sentados, escondidos, apenas torcendo para que o vírus vá embora não é uma boa estratégia e mais pessoas morrerão. Temos que ser espertos, e agir com cautela, porém agir.

O simulador que eu apresento neste post pode ser melhorado, e muito. Muito mesmo. Outras possibilidades de flexibilização das medidas de isolamento podem ser consideradas; dados individualizados e sigilosos aos quais somente o Governo tem acesso, podem ser utilizados; decisores com conhecimento muito mais profundo sobre o tema podem pensar em estratégias viáveis mais complexas para implementação; infectologistas podem utilizar modelos e fazer suposições mais realistas sobre a letalidade do vírus no Brasil; economistas podem pensar mais detalhadamente sobre os impactos econômicos das medidas de isolamento; profissionais da área da saúde podem definir regras de distanciamento específicas para cada setor de atividade econômica; as secretarias de segurança pública podem implementar medidas mais específicas de fiscalização e apoio à população.

Nesse momento em que vivemos, muitas pessoas estão com medo, preocupadas apenas em lutar pela sua própria vida ou a de seus entes queridos. A forma como fomos forçados a entrar em quarentena, quase coagidos por previsões exageradas do número de mortes causadas pelo Coronavírus, fez com que todos ficassem com medo. Agora temos uma ideia melhor da letalidade do vírus, e também dos grupos de risco. Agora temos que ser racionais, e ter coragem. Somente quem sente medo pode ter coragem. O medo não deve fazer com que fiquemos congelados no lugar, sem reação. O medo deve fazer com que andemos com cautela, prontos para o pior, porém andando em direção a um futuro melhor.

De tudo que eu vi, analisei e testei, minha opinião é que devemos isolar todos os domicílios onde residam pessoas de 50 anos ou mais, pois esse é o perfil de risco, juntamente com as que tem comorbidades. Eu não consigo, com os dados disponíveis, avaliar os riscos de liberação daqueles com comorbidades, porém consigo fazer essa avaliação com relação aos domicílios com pessoas mais velhas.

A lógica funciona; o risco é muito baixo para os outros e poderíamos ir do horizontal para o vertical com a velocidade que escolhermos. Mas é essencial proteger os idosos. Eles não podem ser liberados do isolamento social. Somente poderiam sair de casa eventualmente, por curtos períodos, e com muito cuidado. Precisariam usar sempre o equipamento de EPI e entender, e respeitar, as normas para a colocação e retirada dos mesmos. Talvez precisaríamos investir nos idosos e alocar cuidadoras para cuidar de cada um que necessita, ajudando a vencer o vírus, o tédio e o medo.

Sei que muitos idosos não aceitam o isolamento. Não conseguir encontrar com a família, com os netos e bisnetos, pode ser muito dificil para eles. Não poderiam fazer o que estão acostumados a fazer, nem a ajudar as suas familias. Essa distância pode facilmente levá-los à depressão. Estão há muito tempo acostumados a viver as próprias vidas, sem interferência. Mas para o país poder sair da quarentena de forma relativamente rápida e segura, é imprescindível resguardar os idosos.

É fácil falar que temos que isolar um grupo da população ao qual não pertenço. É conveniente e cômodo, visto que não serei eu que perderei as minhas liberdades por mais tempo. Entretanto, escrevo este post com a ajuda da minha mãe, que tem mais de 70 anos e é hipertensa; com certeza seria vulnerável ao Coronavírus. Ela está em isolamenteo total desde a chegada do vírus no Brasil. Fazemos as compras para ela e as deixamos na garagem. Ela recolhe, e depois higieniza cada item antes de utilizar. Ela sai no máximo uma vez por dia para fazer exercícios, sozinha, tomando as precauções necessárias, e não tem contato com outras pessoas, nem as suas netas! Sente na pele a dificuldade desse tipo de isolamento, mas mesmo assim, também reconhece que é o unico caminho até conseguir uma vacina.

Tenho certeza que todos os profissionais que mencionei acima, coletivamente, poderiam encontrar um plano de ação melhor que o meu: mais completo, mais detalhado, com nuances que nem passaram pela minha cabeça. Sou todo “ouvidos”. Porém, por enquanto, acredito que esse seja o caminho. Você, leitor, acha que o caminho deve ser outro? Então provoco você a usar o simulador e testar as diferentes possibilidades. É como brincar de Deus e ver as consequências dos seus atos. E ao fazer isso, pense no balanço entre “hoje” e “amanhã”, entre o “individual” e o “coletivo”, entre “medo” e “coragem”, entre “previsão” e “realidade” e entre “fatos” e “fake news”. São muitas incertezas, eu sei. Mas espero que o simulador possa ajudar você a enxergar uma alternativa melhor, uma flexibilização viável do isolamento, da mesma forma como ele me ajudou.

Não quero forçar ninguém a escolher o mesmo caminho que eu identifiquei. Por isso, fiz o app de simulação para você poder ajudar a decidir o nosso futuro. Porém, eu sei que o caminho para a frente vai ser duro. A questão é apenas decidir como será. Perdemos várias liberdades para o Coronvirus; porém a liberdade de escolha ele ainda não tirou de nós. Não vamos jogá-la fora. Como disse Napoleão Bonaparte:

“Nada é mais difícil, e por isso mais precioso, do que poder decidir.”


  1. Usarei ao longo deste post os termos isolamento horizontal e vertical pois é assim que a maioria das pessoas se referem a esses tipos de isolamento. Porém, está claro para mim que o termo isolamento horizontal não descreve corretamente o isolamento atualmente praticado no Brasil. É fácil argumentar que na verdade o isolamento que temos hoje é vertical, porém o critério de seleção para quem não ficará isolado está relacionado ao setor de atividade do trabalho do morador, e não à sua idade.↩︎


comments powered by Disqus

Voltar ao blog